Qual seria a lista das 10 Histórias em Quadrinho que mudaram minha vida?
Bruno Dorigatti, em foto de acervo pessoal |
Como muita gente, leio a Turma da Mônica desde que me entendo por gente e aprendi a ler o mundo. Sempre gostei de todos, mas em particular do Chico Bento, por mostrar aquela vida idílica do interior, onde a grafia da fala dos personagens aparecem sempre como a gente ouve, o que utilizo desde então nas conversas informais. Além disso, Horácio, pelas tiras reflexivas, e Rolo, o adolescente amigo da Tina e Pipa, sempre foram personagens caros.
Recordo-me de uma visita do Ziraldo ao meu colégio, nos anos 1980. Foi incrível para quem já era fã do Menino Maluquinho e deve ter lido centenas de vezes o livro, naquela época da infância onde a fixação e repetição têm uma extrema importância. Rabisquei, colori, rasguei e maltratei muito o livro do Menino Maluquinho.
3) Fradim | Henfil
Uma das descobertas mais importantes da minha vida. Achei sem querer uma antiga revista do Fradim embaixo da minha cama, ainda criança. Que maravilha o humor negro e nojento de Henfil, onde acabava com todo o puritanismo, colocando um frade para fazer ou imaginar as maiores atrocidades com velhinhas e crianças. Muito escatologia, humor sarcástico, crítica à religião, à hipocrisia e ao politicamente correto que dava seus primeiros sinais ali entre o final dos anos 1980 e início dos 1990. Fundamental por conta dessa visão crítica, onde nada deve ser perdoado nem tolerado, procurando olhar as coisas sempre com essa veia Henfiliana.
Não me lembro exatamante quando, talvez nessa época do Angeli, ou um pouco depois, mas os Piratas do Tietê também impressionaram, primeiro pela capacidade do Laerte de desenhar pra cacete aqueles cenários de fundo nas histórias dos Piratas meio deslocados em uma São Paulo que já piorava a passos largos. Uma história que me marcou profundamente foi aquele onde a mãe revela não ser a mãe, mas um homem, o pai é mulher, e o filho é negro, que vivia com uma pele de branco (A Insustentável Leveza do Ser). Nada é o que parece ser. Sem falar nessa fase do Laerte de uns anos pra cá, onde recupera sua memória infantil e juvenil através da televisão, em Laertevisão e Muchacha, e os quadrinhos mais filosóficos, digamos assim, fazendo humor como quem tira leite de pedra.
A psicodelia, a autocrítica exacerbada, a ironia devastadora de Mr. Natural, e o traço, que traço… Crumb descobri ali entre 13 e 14 anos, através de um amigo mais velho que me apresentou uns álbuns da L&PM. Veio junto com as descobertas dessa fase entre a adolescência e a juventude e apresentou e atiçou a curiosidade sobre as drogas, as mulheres e toda a contracultura norte-americana do final dos anos 1960 em diante. A crítica em relação a autocomplacência hippie e ao oba-oba do paz e amor, que irritavam profundamente Crumb foram um contraponto interessante também.
As tiras em quadrinhos, podem ser líricas, singelas, bonitas, imaginativas e tratar de pessoas comuns, tristes e amarguradas, como Charlie Brown, foi o que aprendi com o incrível e memorável trabalho de Schulz. Como já escrevi: “Produzido a partir do pós-guerra, Charlie Brown e o resto da turma, que vai aparecendo aos poucos, retrata a infância nada idealizada, um pouco até realista demais, e perpassada pela melancolia e inadequação, mas também pelo riso leve e sublime, a amizade e a descoberta do amor, presentes na tragicomédia diária que é a vida, a nossa vida, a vida de todo e qualquer ser humano, sobretudo ocidental, cujos códigos compreendemos bem”.
Fortemente inspirado em Peanuts, Calvin e Haroldo é outra obra-prima em forma de tiras. Como já disse, “a magia de Watterson, ou melhor de Calvin e Haroldo, que no nome original em inglês homenageia o filósofo Thomas Hobbes, está no sarcasmo, nas tiradas filosóficas – ele é apenas um moleque espevitado, mas indaga as grandes questões do mundo e da existência com propriedade –, mas também na dificuldade que as crianças têm de compreender este mundo um tanto irreal e, claro, no desejo de não ir à escola, fazer as lições de matemática, comer aquela gosma, tomar banho, dormir cedo, sem falar no receio com as meninas…”
9) No Coração da Tempestade | Will Eisner
Eisner foi uma descoberta tardia, mas não menos instigante. Talvez minha primeira experiência com graphic novel, ou narrativa gráfica. No caso, sobre a dura vida dos judeus no início do século passado, quando Eisner, a caminho da II Guerra, recorda a história de sua família e de sua infância. A cidade salta aos olhos, uma cartografia emotiva que teve grande impacto , ali pelos meus 16 anos. Daí para mergulhar na obra dele foi um passo.
10) Maus | Art Spiegelman
Art Spiegelman revolucionou a história em quadrinhos com Maus, responsável pelo primeiro Prêmio Pulitzer para uma história em quadrinhos. O filho de um sobrevivente dos campos de concentração foi fundo ao retratar a crueza inominável de Auschwitz, porém sem se render ao que Norman Finkelstein cunhou de indústria do Holocau$to, argumentando que, ao transformar o genocídio que eliminou milhões e milhões de judeus em evento único, incomparável, irrepetível e inalcançável, a elite judaica acabou desenvolvendo um mito. Ao optar pelo tortuoso caminho de expor as feridas da família, Spiegelman demonstra que não é fácil, mas é possível, tratar de tema tão delicado sem cair na idealização nem condenação prévia. E ao incluir suas dúvidas e angústias na segunda parte, lançada em 1991 (a primeira saiu em 1986), depois do sucesso da anterior, e do forte assédio da indústria cultural do Holocausto, ávida para lucrar e subverter uma história que só poderia ser contada em forma de história em quadrinhos, Art atinge o patamar raramente alcançado pelos HQs, com uma instigante narrativa que une passado e presente, usa com precisão a metalinguagem sem tentar analisar essa mácula da história do último século. No diálogo entre Art e seu psicólogo, reproduzido no livro, o autor cita Beckett: “– Samuel Beckett disse: ‘Toda palavra é como uma mácula desnecessária no silêncio e no nada’. – É, responde o psicólogo. […] – Por outro lado, ele FALOU isso”. Há histórias que precisam ser contadas. Mausé uma delas.”
Jimmy Corrigan aprimora e sofistica os quadrinhos, em um trabalho gráfico primoroso que mistura e homenageia o design e a publicidade do início do século XX. A narrativa, que pode se mostrar intrincada no começo da leitura, flui que é uma maravilha logo que se consegue penetrar no universo e nos códigos que o quadrinista se utiliza para narrar a história de três gerações dos Corrigan em Chicago, Estados Unidos, cheia de flashbacks que vão e vêm ao longo da árvore genealógica da família, focando sobretudo na história de seu avô ainda criança, quando vivenciou a Feira Mundial de Chicago, em 1893, e no tempo atual, com o solitário Jimmy, seu emprego ordinário, a mãe controladora de forma até obsessiva, e suas distrações, como registrar o som dos passarinhos em um gravador portátil para ouvir em casa. A narrativa mistura ainda sonhos, devaneios, e imaginações oníricas dos personagens. Muitas vezes, é preciso que estes sonhos, pesadelos e devaneios cessem para compreendermos do que se trata. Um caminho nada simples nem fácil de atravessar, mas que compensa, enche os olhos e pede por uma segunda leitura, muito mais proveitosa.
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