“Solitário Lobo”: as HQs ao contrário [artigo Rede RPG]

[Texto reeditado. Originalmente publicado na Rede RPG em março de 2005] 

hqlobosolitarioA saga do Lobo Solitário finalmente volta ao Brasil, com a Panini prometendo publicá-la por completo, desde o número 1.

Ótima iniciativa, uma vez que a história abriu caminhos para o mangá no ocidente e ajudou a propagar seu subgênero mais realista, o guekigá, que hoje faz sucesso por aqui com Vagabond. Só que a editora preferiu publicar a revista com o péssimo sentido de leitura denominado “oriental”.

Tal sentido não é ruim por ele mesmo, claro: os japoneses costumam ler da direita para a esquerda e isso é normal por lá. Ele se torna ruim quando aplicado fora de seu habitat natural. No Brasil, as editoras JBC, Conrad e Panini utilizam o sentido “oriental” em seus mangás (embora a última ainda abrigue alguns mangás com versão ocidental de páginas). A Panini foi a única editora a detalhar respostas às questões propostas para este artigo, por isso será mais citada.

As editoras alegam formatar as publicações para deixá-las mais próximas dos originais. Vamos analisar:

O sentido tradicional de leitura das HQs ocidentais segue a seguinte fórmula:

Desenho: esquerda para a direita, de cima para baixo

Balões: esquerda para a direita, de cima para baixo

Texto:  esquerda para a direita, de cima para baixo

O sentido tradicional de leitura das HQs orientais segue a seguinte fórmula:

Desenho: direita para a esquerda, de cima para baixo

Balões: direita para a esquerda, de cima para baixo

Texto:  de cima para baixo, da direita para a esquerda

Ou seja, para que fosse seguido ao pé da letra o sentido de leitura oriental, o texto dos balões deveria ser escrito assim:

L    V

E    O

R    C

Ê

A

Q    P

U    O

I      D

?      E

Na versão ocidental: Você pode ler aqui?

Claro que dá pra ler, mas é muito ruim. Seria fiel ao original? Certamente mais fiel, mas não foi adotada no Brasil. A Panini admite que colocar o texto na vertical dificultaria a leitura e o que procuram fazer é um meio-termo. O que existe de fato então é um sentido de leitura que chamarei de misto.

Vamos tratar então da narrativa visual. O termo engloba a forma de se desenhar tudo na HQ, incluindo também balões, requadros (os limites do quadrinho), calhas (os vãos entre os quadros) e letras. Uma boa narrativa visual é responsável por conduzir o leitor ao quadrinho e à página seguinte. Isso é pregado por praticamente todos os quadrinistas, como os também estudiosos do assunto Will Eisner (que cunhou o termo graphic novel, é nome de prêmio de HQs nos EUA e autor de Quadrinhos e Arte Seqüencial) e Scott McCloud (Desvendando os Quadrinhos). Com o sentido misto de leitura de texto e desenho, dá-se um nó  na cabeça do leitor, prejudicando a fluidez natural da história. Não vejo de que modo isso ajude a preservar o que os artistas pensaram originalmente para seus leitores.

samuraixVale lembrar ainda que as HQs têm ordem invertida, mas os textos explicativos das revistas estranhamente não têm: colunas e páginas seguem ordem ocidental, como se lê na abertura e fechamento da edição do Lobo Solitário, na biografia de Osamu Tezuka, em Samurai X e diversas outras revistas. A Panini responde assim: “Ler texto sem imagem da direita para a esquerda exige muuito mais do que ler IMAGENS com textos nessa ordem. Procuramos um meio-termo”. Questão de opinião: para mim, “ler” o desenho junto “ao contrário” atrapalha ainda mais a ordem de leitura dos textos dos balões…

As Histórias em Quadrinhos compõem um tipo de arte para as massas (existem milhares de cópias de cada revista). Assim, quanto mais leitores melhor, certo? Sabe-se que atrair um não-leitor para as HQs não é tarefa fácil (se fosse, todos no mercado estariam nadando em dinheiro). Então, quanto mais dificuldades são impostas para a leitura, menos chance se tem de aumentar o número de interessados e, conseqüentemente, o mercado. Inverter o sentido de leitura é uma dificuldade adicional ao leitor (novato ou não), além de prejudicar a obra.

Há quem diga que preservar o sentido misto atrai os mais fanáticos por mangás. A Panini informa não ter realizado uma pesquisa formal sobre o assunto, mas alega que recebe manifestações favoráveis nas correspondências (“esmagadora maioria”), bem como acompanha tais manifestações em fóruns e sites pela internet (embora não tenha indicado nenhum especificamente).

Enquanto não houver uma pesquisa séria formal amplamente divulgada sobre este assunto, não tenho como aceitar tal argumento. Porque eu mesmo posso fazer uma pesquisa informal com critérios bem subjetivos. Dentro das minhas limitações de círculo social, a imensa maioria nem tenta ler os mangás publicados por aqui no sentido misto (e, por isso, não compram). E não encontrei ninguém que deixaria de ler ou comprar um mangá se fosse totalmente publicado no sentido ocidental. Partindo apenas do bom senso, qual o número é maior: o de pessoas que deixariam de comprar a HQ se fosse publicada no sentido ocidental ou o de leitores que não ligam para isso, mais o número de brasileiros que não lêm HQs, mas têm afinidade com arte sequencial (como cinema, por exemplo) e poderiam se tornar leitores?

Inu-YashaÉ preciso também acabar com essa história de “clubinho seleto” que ouvi por aí (nenhuma editora comentou, foram alguns leitores). O sentido de leitura inverso se tornaria “símbolo de status”, um “código” para uma ”turma especial de adoradores de mangá”. Mas a quem interessa limitar o número de leitores? Quanto mais leitores, mais revistas são lançadas, grandes quantidades geram diminuição de preços.

Soluções? A mais viável (desconsiderando a possibilidade do artista redesenhar sua obra para o ocidente) já é conhecida há tempos: inverter totalmente a página, como que colocando a página diante de um espelho, letreirando em seguida. Como a editora Globo fez com Akira e a Panini faz atualmente com Peach Girl, Eden e Shin Chan. A narrativa visual será preservada (o que não aconteceria se apenas ordenássemos os quadrinhos na ordem ocidental, pois seu interior continuaria desenhado visando o sentido oriental). Fica o inconveniente dos personagens destros se transformarem, subitamente, em canhotos (e vice-versa), mas ainda é um mal menor do que se prejudicar TODA a narrativa visual de uma HQ.

Então pare para pensar no que realmente faz diferença. Faça as editoras saberem se estão erradas. Talvez não tenham tido a oportunidade de  fazer uma grande pesquisa sobre o assunto, cabe aos descontentes enchê-los com correspondência, justificando o que pensam (pois críticas destrutivas não levam a nada). Os links estão abaixo. Cabe também a você provocar mudanças.

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